Alta Performance

ARTIGOS

A Licença Compulsória das Patentes de Medicamentos e o Acesso à Saúde

Por Amanda Cassab e Aline Brito
03 de agosto 2021

A busca pela saúde levou nossa sociedade a um grande avanço tecnológico e científico, especialmente, no que tange a procura por diversos tratamentos relacionados às doenças existentes e futuras e em nenhum momento da história obtivemos tanto sucesso e celeridade quanto atualmente para a cura e o tratamento de enfermidades.

No entanto, a referida busca e o sucesso da indústria médica/científica que favorece toda a sociedade e, frisa-se, merece ser recompensada e protegida, tem muitas vezes sua finalidade deturpada. Isso ocorre quando o lucro passa a ser único e exclusivo objetivo de alguns players envolvidos na indústria da saúde e farmacêutica.

Nesse cenário, é válido elucidar que, em determinadas circunstâncias, direitos empresariais e comerciais se sobressaem aos direitos humanos, passando a ser os principais objetivos, em especial, quanto à indústria farmacêutica, maior investidora no mercado de patentes, que visa resguardar sua Propriedade Intelectual e Industrial.

No conceito originário, a patente é um privilégio temporário concedido para exploração de determinadas invenções ao criador do objeto patenteado, contudo, assim como os demais direitos e privilégios conferidos por lei, é limitado, no presente caso, deve observância ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

Especificamente, a Lei de Propriedade Industrial previu como patenteável, na forma do Art. 30 do TRIPS: “[…] a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.”

Por sua vez, o Art. 6º da mencionada norma nacional determina: “Ao autor de invenção ou modelo de utilidade será assegurado o direito de obter a patente que lhe garanta a propriedade, nas condições estabelecidas nesta Lei.”

Em síntese, a patente nada mais é do que um direito outorgado pelo Estado a um titular, que, então, terá exclusividade na exploração industrial daquela invenção, sob um determinado período.

No Brasil, em regra, o prazo de validade para as patentes de invenção são de 20 (vinte) anos e os modelos de utilidade contam com 15 (quinze) anos de vigência.

Sua importância é objeto de destaque no guia de Patentes do INPI (2020), do qual depreende-se os direitos conferidos ao titular:

Ter a patente de um produto significa ter o direito de impedir terceiros de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar, sem o seu consentimento, (I) o produto objeto de patente ou (II) processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado. O titular da patente poderá conceder licença de sua patente a terceiros, mediante remuneração ou não.”

Assim, as patentes têm importante papel na manutenção do mercado concorrencial, bem como no desenvolvimento tecnológico do país. Como ilustra o doutrinador Jacques Labrunie[1] (2006, Pág. 22):

Estimulando e encorajando o espírito de invenção pela concessão de um direito exclusivo e obrigando os concorrentes do titular a pesquisar técnicas novas para estarem em condições de manter sua concorrência, as patentes contribuem para o desenvolvimento econômico e para o progresso técnico, e realizam uma melhora nas condições materiais da vida.

De outro lado, convém ressaltar que o lucro na sua exploração será proporcional à escassez de uso, o que justifica a elevação dos preços em uma situação de monopólio temporário.

Nessa seara, a lógica da proteção à patente também é intrínseca aos medicamentos, uma vez que os direitos imateriais aplicáveis à indústria farmacêutica e científica exercem grande influência em sua proteção e exploração comercial.

Destaca-se, que um medicamento com uma fórmula inovadora é aquele cujo princípio ativo tenha sido o primeiro a obter o registro no país. Posteriormente a pesquisas sobre eficácia e segurança, sua formulação pode ser protegida por patente desde que atendidos os requisitos para a patenteabilidade, conferindo ao seu titular monopólio temporário de exploração.

Somente após a vigência do prazo conferido pelo direito patentário ou em situações excepcionais poderão ser lançados no mesmo mercado os medicamentos denominados genéricos, isto é, aqueles que contém o(s) mesmo(s) princípio(s) ativo(s), na mesma dose e forma farmacêutica do medicamento inovador.

Nesse contexto, é importante destacar que a empresa ou sociedade, titular da patente do medicamento inovador, geralmente investe vultosos valores em pesquisa e desenvolvimento, enquanto a empresa que desenvolve o genérico gasta ao menos 35% (trinta e cinco por cento) a menos desse montante.

De tal forma, a utilização do monopólio temporário concedido pela patente, sem qualquer tipo de abuso, acaba por justificar e ressarcir o titular que investiu tempo e dinheiro no desenvolvimento do medicamento moderno.

Por outro lado, o avanço tecnológico do mercado de fármacos guarda estrita relação com a longevidade e manutenção da vida digna, bem como, do direito humano básico de acesso à saúde.

De tal modo, a criação de um produto até então inexistente, que supra uma necessidade da população, gera verdadeiro anseio por toda a coletividade, pela sua multiplicação e disponibilização ampla, para que todos possam se beneficiar de suas inovações.

Como exemplo, cita-se a crescente e recente busca por medicamentos inovadores capazes de auxiliar no tratamento da Covid-19, doença infecciosa que ameaça simultaneamente muitas pessoas pelo mundo, causando a situação de PANDEMIA reconhecida pela Organização Mundial da Saúde – OMS.

Diante deste exemplo, denota-se que há um conflito de princípios jurídicos entre o interesse particular e justo dos titulares das patentes, já concedidas, com o direito do acesso à saúde, dignidade humana e mesmo a vida.

Nas lições de DUARTE (2016, p. 43): “A fim de garantir uma vida digna a seus cidadãos com a efetivação de seus direitos, passam a ser exigíveis, frente ao Estado, prestações positivas […] É neste âmbito que se insere o direito à saúde […]”.[1]

De fato, o efetivo reconhecimento constitucional dos direitos sociais, por si só, determina, em qualquer circunstância, e mesmo em tempos de crises econômicas, um núcleo indisponível para os diversos agentes e poderes públicos e/ou políticos, aqui incluídos os órgãos jurisdicionais.

No Brasil, a inserção dos direitos sociais na Constituição atribui a eles o caráter de direito fundamental, dentre os quais podem ser citados os previstos no Art. 6º do diploma ordenador, sejam eles: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Nesse cenário, no Brasil, sendo o direito à saúde tutelado pelo Estado, verifica-se que cabe a ele o controle das patentes de medicamentos e sua flexibilização em prol do interesse comum, tanto em relação à análise e deferimento do pedido, quanto à análise dos argumentos de repressão ao uso abusivo, uso indevido ou uso que não supre as necessidades do mercado, observados princípios constitucionais da atuação Estatal.

Revela-se, que a Constituição é clara ao prever a finalidade do direito de propriedade industrial assegurado em seu Art. 5º, inciso XXIX, seja ele: “[…] o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.”

Motivos pelos quais, surgindo divergência entre os interesses privados e os direitos sociais (interesse social), como ocorre entre o direito de patente e o direito à saúde, emerge ao Estado a necessidade de valer-se dos institutos de direito positivados para garantia do direito público violado.

Vale lembrar, que nos termos da Lei nº 5.991/73, responsável por dispor sobre o controle sanitário de drogas e medicamentos, entendem-se por medicamento: “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico.”

De tal modo, não podendo da lei se afastar, ao Estado cabe verificar se a patente de medicamentos atende a finalidade prevista na lei, inclusive, observando ditames sociais e individuais.

Caso contrário, verificando que o medicamento obtido possui finalidade curativa, paliativa ou diagnóstica, no entanto, as atividades envolvendo-o estão atreladas exclusivamente à esfera privada do indivíduo que o fábrica ou comercializa, cabe ao Estado, nos termos da lei e em razão da função social, buscar efetivar mecanismos de proteção ao referido abuso, como ocorre no procedimento de licenciamento compulsório.

A Licença Compulsória nada mais representa que um instrumento posto às ordens do Poder Público e dos demais interessados, para desconstituição temporária da proteção jurídica conferida a uma pessoa pela concessão da Carta Patente.

No âmbito dos medicamentos, a popularmente denominada “quebra da patente” guarda relação com os elevados preços e difícil acesso aos referidos medicamentos, podendo também ocorrer em casos de produção negligenciada ou desabastecimento do mercado.

Tecnicamente, o que se denomina, comumente, “quebra da patente”, deve ocorrer quanto unidos os seguintes requisitos: (I) abuso de direito; (II) previsão legal; (III) utilização dos procedimentos adequados.

À vista disso, identifica-se o abuso do direito de patente quando o titular excede os limites dos direitos que lhe foram conferidos, desviando a finalidade da concessão, ou mesmo quando há o interesse público que se sobrepõe ao interesse particular de proteção da propriedade imaterial adquirida.

Vale dizer, que para o regulamento do Art. 71 da Lei de Propriedade Intelectual, Decreto nº 3.201 de 06 de outubro de 1999, entende-se por emergência nacional: “o iminente perigo público, ainda que apenas em parte do território nacional.”, e por interesse público: “os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do País.”.

Portanto, denota-se que, em situações de perigo à saúde pública, para evitar um colapso ou maiores prejuízos para a saúde de uma nação, ou mesmo do mundo, como ocorre em casos de pandemias globais, o Poder Público poderá quebrar determinadas patentes de medicamentos ou vacinas.

A competência para a concessão da licença ex officio do art. 71 da Lei de Propriedade Intelectual não é restrita ao INPI, como ocorre com a licença com fulcro no Art. 68 do mesmo diploma legal. A apuração da necessidade pública ou da emergência será da incumbência da autoridade a que esteja vinculado o atendimento à necessidade pertinente, cita-se, à título de exemplo, se a emergência for vinculada à atividade de saúde, o Ministro da Saúde será competente para apurar se existe a necessidade e para determinar se o titular tem condições para supri-la.

Por razões de legalidade e transparência, o ato que confere o licenciamento compulsório deve ser público no Diário Oficial da União (Art.3º do Decreto), devendo conter: (I) o prazo de validade da licença; (II) a remuneração ao titular (Art. 5º).

Os efeitos do deferimento são previstos no Art. 74 citado, prevendo: (I) o dever de exploração da patente pelo licenciado no prazo de 1 (um) ano da concessão, admitida interrupção por igual prazo; (II) o direito ao titular de requerer a cassação da licença se descumprido tal prazo; (III) o direito do licenciado de praticar atos em defesa da patente; (IV) a impossibilidade de cessão, salvo se realizada junto com alienação ou arrendamento por parte do empreendimento que a explore.

A exploração e a importação cessarão tão logo sejam atendidos os interesses mencionados (Art., 12º do Decreto anteriormente citado), sendo que à autoridade competente caberá oficiar o INPI acerca do licenciamento realizado (Art. 13 do mesmo diploma legal).

Ressalte-se, o licenciamento compulsório deverá ser sempre a última medida adotada pelo Estado como ingerência no direito privado de patente, aplicada em casos de extrema necessidade, para que não ocorra a violação indevida de direitos legítimos de terceiros.

Assim, caberá ao Estado, detentor do poder-dever de garantir o acesso à saúde pública, em observância à legalidade e razoabilidade, verificar as situações excepcionais de licenciamento compulsório.

No Brasil, dois casos importantes de medicamentos estão inseridos nas questões envolvendo o instituto supramencionado, são eles os pedidos de licenciamento compulsório dos antirretrovirais “Kaletra” e “Efavirenz”.

Cumpre esclarecer, que ambos os casos tiveram por fundamento do processo de licenciamento compulsório os altos preços praticados pelas fabricantes dos medicamentos.

O Efavirenz é um medicamento antirretroviral utilizado no tratamento da AIDS, consumido por cerca de 40% dos portadores da doença no Brasil. Em 04 de maio de 2007, através do Decreto n. 6.108, o Presidente da República concedeu o licenciamento compulsório de suas patentes, com fundamento no Art. 71 da Lei nº 9.279/96.

Anteriormente, através da Portaria nº 886/2007, o medicamento foi declarado como de interesse público, fazendo jus à aplicação do dispositivo do artigo 71 da Lei de Propriedade Industrial, isto é, tornando o ato devidamente motivado.

PORTARIA Nº 886, DE 24 DE ABRIL DE 2007. Publicada em 25/04/2007
Declara de interesse público os direitos de patente sobre o Efavirenz, para fins de concessão de licença compulsória para uso público não comercial.

No plano de negociações, o Brasil tentou negociar com o laboratório Merck Sharp & Dohme depois da publicação da Portaria supra, atribuindo prazo de 7 dias para resposta, sendo que o laboratório chegou a oferecer redução de 30% nos valores, isto é, se cada comprimido antes custava U$ 1,59 passaria a custar U$ 1,11.

Ocorre, que o Brasil almejava os mesmos preços praticados para a Tailândia, isto é, U$ 0,65 e que fosse afastada a cobrança de valores aleatórios a depender do poder aquisitivo do país adquirente.

Portanto, referida redução inicialmente proposta de U$ 1,11 não foi aceita pelo Brasil, que, após o licenciamento compulsório, passou a importar, de início, a versão genérica da Índia. Posteriormente, com a transferência de informação obrigatória na forma do Artigo 3º do Decreto nº 6.108/2007, aplicável aos EUA por força do Art. 31 do TRIPS, o Brasil, através da farmacêutica Farmanguinhos (Fundação Oswaldo Cruz), iniciou a produção interna em 2009.

Atualmente e com base no histórico nacional narrado, há uma grande discussão sobre a possibilidade da concessão de licença compulsória para produtos necessários ao combate da pandemia do Covid-19, pois, assim como no caso dos medicamentos necessários ao combate à AIDS, trata-se de um assunto de interesse social e de saúde pública.

O projeto de Lei n. 12/21 pretende alterar o texto da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96) com o fito de incluir a autorização expressa ao governo federal para licenciar compulsoriamente produtos e medicamentos necessários ao enfrentamento de crises de saúde pública.

São ao todo 14 projetos apensos sobre o tema, sob responsabilidade da Câmara dos Deputados, com diversos temas conexos ao assunto em estudo, dentre os quais: a concessão automática do licenciamento logo após a declaração de emergência da saúde pública (considerando a situação de pandemia existente o Presidente da República poderia, caso aprovado, optar por conceder de ofício, a referida licença compulsória).

Atualmente, o projeto de lei foi aprovado pelo Senado Nacional e aguarda a votação na Câmara dos Deputados com tramitação em caráter de urgência.

Neste sentido, é relevante mencionar que 100 (cem) países apoiam a proposta da Índia e da África do Sul direcionada a apreciação da Organização Mundial de Comércio para evitar que a proteção das patentes concedidas e demais direitos de Propriedade Intelectual e Industrial vinculados sejam entraves ao livre acesso às vacinas e produtos médicos para o enfrentamento da Covid-19, visto que tal óbice acarretaria mais prejuízos para a população mundial.

Alguns países desenvolvidos se manifestaram contra a referida flexibilização, dentre os quais citamos: a União Europeia e o Reino Unido. Já os Estados Unidos da América, recentemente, alterou seu entendimento e passou a apoiar a licença compulsória de vacinas e medicamentos contra a Covid-19 em uma decisão importante para a população mundial, visto que os EUA são responsáveis pelo monopólio dos referidos privilégios.

O Brasil, por sua vez, adota uma posição intermediária, aumentando a amplitude de licenciamento para diversos países com o escopo de descentralizar a produção de insumos para a produção de vacinas.

____________________________________________________________________________________________

[1] JACQUES, Labunie. Direito de patentes: condições legais de obtenção e nulidades. Manole. 2006, Pág. 22

[2] MELO. Rodrigo Duarte. Aspectos Jurídicos da Licença Compulsória na Indústria Farmacêutica. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2016.

Amanda Cassab Ciunciusky Toloni.
Advogada, Especialista em Propriedade Intelectual e Industrial, Direito do Entretenimento e Mídia pela Escola Superior de Advocacia (OAB/ESA), Membro efetivo da Comissão para Estudos sobre o Direito em Propriedade Industrial e Intelectual, Expert em Direito Regulatório Farmacêutico pelo Instituto Paulista de Direito Regulatório.

Aline Brito S. Souto Maior
Advogada, Especialista em Propriedade Intelectual e Industrial, Direito do Entretenimento e Mídia pela Escola Superior de Advocacia (OAB/ESA), Presidente da Comissão para Estudos sobre o Direito em Propriedade Industrial e Intelectual.

Compartilhar Agora

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on google
Google+
Share on whatsapp
WhatsApp

São Paulo

Avenida Dr. Chucri Zaidan . 296

23º andar - Cjto. 231 . Torre Z

Vila Cordeiro - CEP 04583-110

T/Phone + 55 (11) 3376-6343